APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ

A releitura dos clássicos sob a ótica da fenomenologia

Este dossiê tem como tema a filosofia na sua “forma” clássica e na sua “forma” atual. Que relação existe entre estas duas “formas”? Antes de mais nada, o que caracteriza um clássico e porque seria interessante ainda lê-lo?[1]. Quais são os principais problemas que um estudante de filosofia ou qualquer leitor contemporâneo enfrenta ao deparar-se com um texto clássico?[2]. Os textos do presente dossiê não respondem a estas questões. Eles já se encontram in medias res. Eles são esta relação mesma já em ato. Quando se retorna aos clássicos com a intenção de sobrepor paradigmas realiza-se inevitavelmente um “ato de violência”. Mas quando, ao invés da sobreposição se considera o intercruzamento, os êxitos são outros. Este dossiê encontra os clássicos na encruzilhada e considera os rumos diferentes que cada um toma ou tomou.

O texto de Ibraim Vitor de Oliveira resgata a atitude, que muitas vezes passa despercebida, de Heidegger que jamais abandona definitivamente, sobretudo nas intuições de Ser e tempo, as categorias fundamentais de Aristóteles; atitude que o professor Ibraim de Oliveira reconhece como um “passo atrás” de Heidegger na superação da metafísica em sua origem mais originária. Já o texto de Paulo Augusto da Silva participa a uma polêmica da qual temos notícias graças ao clássico Contra Celsum, de Orígenes. Trata-se de uma discussão que se for pensada em modo geral e não somente restrita aos protagonistas, no caso Celso e Orígenes, se apresenta de modo bastante radical e tensa, pois o cenário que a motiva é uma passagem de época, aquela da racionalidade grega à racionalidade influenciada pelo cristianismo nascente. O artigo de Diego Fragoso Pereira apresenta uma análise interpretativa de uma parte seleta do De Doctrina Christiana onde Agostinho de Hipona descreve em grandes linhas, o sentido inaudito de um “discurso interior”, até então pouco elaborado. Cristiane Pieterzack relata a experiência quase laboratorial de releitura da obra de S. Boécio De Philosophiae Consolatione com iniciantes em filosofia. Por fim, completado o espaço dos artigos, três autores (Lúcio Álvaro Marques, Maurício de Assis Reis e José Mário Santana Barbosa) se reúnem entorno a Pierre Hadot resgatando o paradigma clássico no qual o “discurso filosófico” fornece a direção, o sentido e a justificação do “modo de vida” conduzido pelos filósofos.

Este dossiê publica também uma entrevista concedida pelo professor Paul Gilbert, de Roma. Como se poderá constatar, a entrevista mantém o tom coloquial de uma normal conversa entre o mestre e seus alunos. Nesta, o professor Gilbert, reflete sobre a história da filosofia, comentando as temáticas clássicas e os desafios atuais. Facilitados, obviamente, pelo gênero próprio da entrevista não faltam referências à sua experiência existencial com a filosofia, experiência que não deixam de enriquecer a compreensão da filosofia mesma.

Digno de nota são as referências à sua experiência como docente. Em uma recente conferência, o professor Gilbert havia confidenciado quais teriam sido as primeiras questões que ele próprio se pôs quando aceitou o desafio de ensinar metafisica na Universidade Gregoriana. Surpreendentemente, uma das questões era esta: “Ao ensinar metafisica, o que posso fazer por essa gente (os alunos)?”[3].

Em Gilbert a metafísica é deslocada (ou spostata come se diz em língua italiana), não somente no sentido que aparece nos seus textos – de que o “ser” é o primeiro incondicionado absoluto –, ela é deslocada também no sentido de que é capaz de mover-se da reflexão fundamental em direção à “pequenez do homem”. Encontrar P. Gilbert pessoalmente – mesmo que seja para uma entrevista numa tarde do verão romano – é ser imediatamente introduzido no segundo deslocamento, aquele do encontro com o humano.

No final do dossiê, o professor P. Gilbert presenteia-nos com uma resenha do livro Por uma sensibilidade além da essência: Lévinas interpela Platão, de Edvaldo Antonio de Melo, seu discípulo de longa data. O livro de De Melo é resultado de uma pesquisa que visa colocar em relação a ἐπεκεινα τῆς οὐσίας de Platão e as categorias de Lévinas, sobretudo o “além da essência” que, a bem dizer, ocupa um lugar central na economia da obra levinasiana.

Não nos resta que augurar a todos uma boa leitura dos textos do dossiê.

Cristiane Pieterzack

Edvaldo Antonio de Melo

Organizadores do Dossiê A Releitura dos Clássicos sob a ótica da Fenomenologia


Apresentação dos artigos DIVERSOS

Além do Dossiê temático intitulado A releitura dos clássicos sob a ótica da fenomenologia, o presente número da Revista de Filosofia Inconphidentia tem a alegria de apresentar cinco artigos em fluxo contínuo.

O primeiro artigo intituladoO lugar de Deus no pensamento de Immanuel Kant, de Euder Daniane Canuto Monteiro, perpassa algumas noções fundamentais das obras de Kant que tratam do assunto em questão. Dentre as várias reflexões abordadas, o autor investiga se Deus é ou não necessário para a moral.

O segundo artigo intitulado Apontamentos sobre os fundamentos cosmogenéticos do inventário categorial de Charles Sanders Peirce, de Caique Marra de Melo, faz a apresentação de alguns apontamentos sobre os fundamentos cosmogenéticos das categorias segundo Charles Sanders Peirce. Trata-se de um estudo embasado nas conjecturas metafísicas propostas por Ivo Assad Ibri em sua obra Kósmos Noétos: A Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce.

O terceiro artigo intitulado “outro” como fato: uma abordagem sobre a relação entre filosofia e violência, de Dulcelene Ceccato, analisa o vínculo entre filosofia e violência quando diferentes paradigmas são relacionados. A autora faz uma abordagem crítica da filosofia do “ser” e do “sujeito” – ego cogito – da tradição filosófica Ocidental e propõe uma filosofia pautada na ética, que surge da aproximação ao outro (humano). Trata-se de uma proposta filosófica nova e ousada chamada “filosofia intercultural”.

O quarto artigo intituladoUn panorama de la situación actual de la filosofía de la mente, de Yolanda Rodríguez Jiménez, investiga o problema central da filosofia da mente. Trata-se de um estudo interativo entre um elemento material – corpo e cérebro – e um elemento imaterial, a saber, alma e mente. Várias são as perguntas filosóficas colocadas pela autora ao longo de seu artigo sobre a identidade e a continuidade da pessoa através do tempo, bem como a questão da existência da alma. Em seu artigo, a autora mostra um panorama geral da situação atual da filosofia da mente e propõe alguns critérios que favoreçam uma visão interdisciplinar da pessoa.

Enfim, o quinto artigo intitulado A sobrevivência: o princípio de autonomia e a fragilidade do ser humano diante do avanço tecnológico, de José Anchieta Arrais de Carvalho, traz uma discussão sobre a bioética e a biopolítica a partir do pensador italiano Giorgio Agamben.Em seu texto, o autor apresenta algumas discussões, como odesafio de sobreviver na sociedade contemporânea, a busca do homem pela sobrevivência diante do próprio homem, o princípio da autonomia e a realidade existencial dos vulneráveis. O autor acentua que a eterna luta pela sobrevivência é permeada pelos desafios dos avanços tecnológicos, pela sua intervenção sobre a vida biológica e o meio ambiente, conforme se pode ver no rompimento da barragem de Brumadinho em Minas Gerais que trouxe graves impactos ecológicos e sociais para a sociedade.

Agradecemos aos autores por partilhar conosco seus textos e desejamos a todos uma boa leitura!

Edvaldo Antonio de Melo

Maurício de Assis Reis

Editores da Revista InconΦidentia


DOSSIÊ A RELEITURA DOS CLÁSSICOS SOB A ÓTICA DA FENOMENOLOGIA

Apresentação do Dossiê – Cristiane Pieterzack; Edvaldo Antonio de Melo – Organizadores do Dossiê

Aristóteles: lugar do “passo atrás” de Heidegger – Ibraim Vítor de Oliveira

O Discurso verdadeiro e encontro de culturas – Paulo Augusto da Silva

O Verbum que geramos na mente e levamos no coração: notas sobre o Verbum Interior no De Doctrina Christiana – Diego Fragoso Pereira

Consolatio: um “clássico” e os primeiros passos na Filosofia – Cristiane Pieterzack

O modo de vida filosófico em Pierre Hadot – Lúcio Álvaro Marques; Maurício de Assis Reis; José Mário Santana Barbosa

ENTREVISTA

Il dispiegarsi dela Filosofia Tra Classici e Contemporanei: Entretiens a Paul Gilbert

RESENHA

Por uma sensibilidade além da essência: Lèvinas interpela Platão, de Edvaldo Antonio de Melo – Paul Gilbert

ARTIGOS DIVERSOS

Apresentação dos artigos diversos – Edvaldo Antonio de Melo; Maurício de Assis Reis – Editores da Revista Inconfidentia

Sobre o Lugar de Deus no Pensamento de Immanuel Kant – Euder Daniane Canuto Monteiro

Apontamentos sobre os fundamentos cosmogenéticos do inventário categorial de Charles Sanders Peirce – Caíque Marra de Melo

O “Outro” como fato: uma abordagem sobre a relação entre filosofia e violência – Dulcelene Ceccato

Un panorama de la situación actual de la filosofia de la mente – Yolanda Rodríguez Jiménez

A sobrevivência: o princípio de autonomia e a fragilidade do ser humano diante do avanço tecnológico – José Anchieta Arrais de Carvalho

Edição Completa


[1] Neste texto não responderemos a estas questões, porém, entendemos que elas não devem ser rapidamente desconsideradas. Em linhas gerais podemos dizer que a noção de “clássico” não se restringe unicamente aos textos filosóficos da antiguidade. Para responder a este problema, as enciclopédias filosóficas e os dicionários podem nos ajudar. Um texto clássico é um “tecido vivo”, continuamente retomado nos seus aspectos desconcertantes, inaceitáveis ou de consenso na atualidade. Portanto, uma obra clássica “tem a ver e não tem a ver” com o tempo. Um clássico de filosofia distingue-se, outrossim, do livro “erudito”. O clássico de filosofia em geral é mais livre, sem muitas defesas, mais exposto e de algum modo, inimitável.

[2] Sobre os problemas de leitura, estes certamente são de ordem filológica, histórico-crítico e de hermenêutica em geral, ou seja, não somente as interpretações consagradas, mas também a suspeita, a comparação entre abordagens diversas, a revisão… Para aprofundamento de tais problemas indicamos os recentes trabalhos dos pesquisadores da Universidade de Macerata, Itália. Eles vêm desenvolvendo um projeto hermenêutico (ou mais que isso, uma verdadeira Veltanschauung segundo os próprios maceratenses) conhecido como “Abordagem multifocal” em referimento à performance dos filósofos antigos, os quais tendiam a assumir uma atitude interpretativa “multifocal” em virtude da complexidade com a qual a realidade apresentava-se aos seus olhos (ver CATTANEI, Elisabetta; FERMANI, Arianna; MIGLIORI, Maurizio (Ed.). By the sophists to Aristotle through Plato. Sankt Augustin: Academia Verlag, 2016, 250 p.). A nosso aviso, a escola de Macerata é uma excelente candidata na atualidade para nos acompanhar na leitura filosófica dos clássicos.

[3] Esta frase foi pronunciada por ocasião do Convegno Internazionale “Metafisica e fenomeno religioso”, Roma, 30 de outubro de 2017. Texto não publicado. Outros textos referentes ao evento podem ser consultados na página: <https://mondodomani.org/dialegesthai/lmb01.htm>.